Se eu fosse eu - Clarice Lispector

Xíxara de café com livro e fone, café poético
 
Tive a oportunidade de conhecer esta obra de Clarice por meio de uma peça de teatro linda que assisti no Centro Cultural do Banco do Brasil há alguns dias. O espetáculo Se Eu Fosse Eu – Clarices, apresentado pelo grupo Amacacas, está belíssimo e despertou em mim o desejo de ler o conto na íntegra. Se eu fosse eu, faz parte de um conjunto de três contos utilizados para a organização e produção do espetáculo.

Vale a pena assistir — mas vá com disposição para ser cutucado por reflexões que balançam as estruturas.

Como não consigo resistir aos textos de Clarice, e mesmo sabendo que este já foi inúmeras vezes compartilhado nas redes, decidi publicá-lo aqui também. Que ele continue verberando e conquistando os corações dos leitores que, como eu, gostam da inquietação que só as palavras verdadeiras sabem causar.
 

 Se eu fosse eu - Clarice Lispector

 

Clarice lipector, se eu fosse eu, conto literário

Quando não sei onde guardei um papel importante e a procura se revela inútil, pergunto-me: se eu fosse eu e tivesse um papel importante para guardar, que lugar escolheria? Às vezes dá certo. Mas muitas vezes fico tão pressionada pela frase “se eu fosse eu”, que a procura do papel se torna secundária, e começo a pensar. Diria melhor, sentir. 

E não me sinto bem. Experimente: se você fosse você, como seria e o que faria? Logo de início se sente um constrangimento: a mentira em que nos acomodamos acabou de ser levemente locomovida do lugar onde se acomodara. No entanto, já li biografias de pessoas que de repente passavam a ser elas mesmas, e mudavam inteiramente de vida. Acho que se eu fosse realmente eu, os amigos não me cumprimentariam na rua porque até minha fisionomia teria mudado. Como? Não sei.

Metade das coisas que eu faria se eu fosse eu, não posso contar. Acho, por exemplo, que por um certo motivo eu terminaria presa na cadeia. E se eu fosse eu daria tudo o que é meu, e confiaria o futuro ao futuro.

“Se eu fosse eu” parece representar o nosso maior perigo de viver, parece a entrada nova no desconhecido. No entanto, tenho a intuição de que, passadas as primeiras chamadas loucuras da festa que seria, teríamos enfim a experiência do mundo. Bem sei, experimentaríamos enfim em pleno a dor do mundo. E a nossa dor, aquela que aprendemos a não sentir. Mas também seríamos por vezes tomados de um êxtase de alegria pura e legítima que mal posso adivinhar. Não, acho que já estou de algum modo adivinhando porque me senti sorrindo e também senti uma espécie de pudor que se tem diante do que é grande demais.

Livro: A Descoberta do Mundo

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